Criar um museu da escravatura para lembrar estas narrativas era suficiente? Não. Mas ajudaria a não esquecer um passado triste que hoje, de maneira subtil, sobrevive em tanto lugar.
De quando em vez, volta ao debate público a questão do racismo. E a pergunta volta de novo a ser colocada: Portugal e os portugueses são racistas? A resposta imediata é não. Mas, na prática, a resposta é um redondo sim. O racismo é uma realidade amarga que continua a assombrar as nossas sociedades, mesmo em pleno século XXI.
Cinquenta anos depois da independência dos países africanos, há uma certa elite que continua a enriquecer com África. Seja através de negócios, de acordos de negócios com dirigentes africanos, mas também quando não se permite o crescimento harmonioso, igualitário e global de um grupo importante de cidadãos, os afrodescendentes. Ainda hoje, em 2023, há uma importante comunidade de imigrantes e portugueses de origem africana a ser utilizada como mão de obra barata. Esta exploração permite que um grupo enriqueça à custa da miséria dos mais necessitados.
Infelizmente, as classes mais desfavorecidas necessitam ainda de várias gerações para ascenderem socialmente. E, no que toca à comunidade negra, há muita renitência em permitir as mesmas oportunidades que estão disponíveis à comunidade branca.
Se olharmos para a nossa história, ou de outros povos colonizadores, reforçamos a consciência de que os escravos não tiveram ajudas quando saíram da escravatura, pelo contrário. Houve grupos sociais e económicos que tudo fizeram para os manter como grupo desfavorecido e assim continuarem a ter servidores disponíveis a baixo preço.
A escravatura é um capítulo sombrio da história da humanidade, e Portugal, como outras nações, desempenhou um papel significativo nesse sistema brutal. No entanto, a história da escravatura no nosso país permanece amplamente desconhecida ou negligenciada.
Infelizmente, Portugal continua mergulhado no negacionismo. Há inércia da parte das classes políticas e dirigentes, incapazes de reconhecer e pedir desculpas pelos crimes do comércio esclavagista, da invasão e expropriação sistemática do território africano, do colonialismo e seus massacres. Tais crimes continuam a não estar espelhados nos manuais escolares, na consciência pública, enquanto os portugueses afrodescendentes continuam a ser vítimas de preconceito, racismo, falta de igualdade nas oportunidades e falta de referências.
Faria sentido criar um museu dedicado à escravatura? Sim. Seria uma forma de lembrar este passado sombrio, enquanto ferramenta poderosa para aumentar a consciencialização sobre este capítulo vergonhoso da história.
Esta vergonha histórica pode ser observada em várias áreas:
- O racismo estrutural: uma ferida aberta na sociedade portuguesa
Sistema de justiça criminal: as minorias étnicas enfrentam taxas desproporcionalmente altas de prisão ou de sentenças mais severas quando comparadas com os seus pares brancos. - O racismo estrutural: uma ferida aberta na sociedade portuguesa
Educação: disparidades na qualidade da educação, acesso limitado a oportunidades e altas taxas de suspensões e expulsões, que afetam desproporcionadamente os estudantes de minorias étnicas. - Mercado de trabalho: práticas de contratação discriminatórias, disparidades salariais e falta de representação em cargos de liderança. Estes são apenas alguns exemplos de como o racismo estrutural afeta o mundo do trabalho, da justiça, da educação e do desenvolvimento integral de um cidadão.
- Tudo isto promove a desigualdade de oportunidades e eterniza a disponibilidade de mão de obra barata, submissa e sem qualificações.
Tudo isto promove a desigualdade de oportunidades e eterniza a disponibilidade de mão de obra barata, submissa e sem qualificações.
Aqui se coloca outra questão: a perpetuação do racismo interessa a alguém? Mais uma vez, a resposta é um rotundo sim.
Criar um museu da escravatura para lembrar estas narrativas era suficiente? Não. Mas ajudaria a não esquecer um passado triste que hoje, de maneira subtil, sobrevive em tanto lugar.
Dado o elevado número de cidadãos portugueses que são afrodescendentes, o número de portugueses que nasceram e viveram em África, os cidadãos africanos residentes em Portugal e o legado histórico de uma convivência de séculos, seria importante criar iniciativas como a celebração do Dia de África.
Enfrentar o racismo estrutural requer um esforço conjunto de indivíduos, de comunidades e de governos. É crucial que identifiquemos as estruturas que perpetuam a discriminação e trabalhemos para reformá-las
Por outro lado, seria fundamental que nas escolas portuguesas as novas gerações crescessem com mais informação sobre a real história de Portugal em África, para que os portugueses afrodescendentes se sentissem vistos e valorizados no seu país, e para que a sociedade celebrasse a diversidade, que é a sua essência. Desta forma poderíamos construir um diálogo aberto sobre este passado, com a participação ativa de todos os seus interlocutores.
Enfrentar o racismo estrutural requer um esforço conjunto de indivíduos, de comunidades e de governos. É crucial que identifiquemos as estruturas que perpetuam a discriminação e trabalhemos para reformá-las. Só através de uma ação coordenada e consciente poderemos esperar combater efetivamente o racismo estrutural e construir uma sociedade verdadeiramente igualitária, onde todos tenham as mesmas oportunidades.
Em Portugal não podemos repetir os erros que foram cometidos em França. Os episódios a que temos estado a assistir em França são também o resultado dos guetos sociais que foram criados e que dão origem inevitavelmente a uma espécie de apartheid socioeconómico, promovendo a discriminação e a exclusão de cidadãos na sua própria sociedade.
Portugal deve promover uma política de inclusão diferente, nomeadamente no que se refere aos afrodescendentes que fazem parte integrante da história do nosso país há 500 anos. É necessário unir esforços para que esta comunidade não se sinta excluída. A classe política tem um dever de reabilitar a história e pedir perdão pelo passado colonial.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
Elson Angélico, em O Público, 07/12/2023