Existe uma aldeia do Nepal onde em cada família um elemento já terá vendido um rim

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Os habitantes de Hokse, no Nepal, onde há muitos anos grupos de tráfico de órgãos atuam, persuadindo os aldeões a venderem os seus rins, garantem que na região essa prática já não tem ocorrido com frequência. Contudo, alguns deles continuam a correr riscos extremos na tentativa de melhorarem as suas vidas, e este órgão volta a estar no centro do problema

Aaldeia de Hokse, a cerca de 50 quilómetros de Katmandu, no Nepal, é conhecida há vários anos como o “Vale dos Rins”, onde se crê que pelo menos um dos membros da maioria das famílias residentes já tenha vendido este órgão, em vários casos por apenas 10 dólares, numa tentativa desesperada de melhorar as suas condições financeiras.

Uma reportagem de 2016 do jornalista Steve Chao para a Al Jazeera dava conta disso mesmo, acrescentando que grandes redes de tráfico de órgãos estariam infiltradas na região com grande negócio de persuasão montado que se servia da falta de literacia, por um lado, e do desespero, por outro, dos seus habitantes.

Os aldeões (muitos deles nem sabiam o que era um rim), aceitavam vender este órgão na esperança de conseguirem melhores condições de vida, e acabavam por ficar com marcas profundas nos seus corpos: vários ficavam, inclusive, impedidos de trabalhar, e outros morreram na sequência da cirurgia.

Anos depois, esta situação dramática continua, e Kanchha, nepalês na casa dos 40 que vendeu o seu rim para tentar salvar a sua situação financeira, garante que “é impossível contar quantas pessoas o fizeram”. “Em todo o lado, nesta aldeia, na outra aldeia, muitas pessoas venderam os seus rins”, conta, numa reportagem recente realizada pela Sky News.

Embora constrangido, o homem, que ainda não consegue trabalhar devido às dores, decidiu partilhar a sua história, por se sentir enganado e prejudicado. A Sky News escreve que, há cerca de dois anos, os habitantes da região têm tentado “desesperadamente” livrar-se destes grupos de tráfico, acusando-os de explorarem os aldeões e de lhes mentirem – a alguns, foi-lhes garantido que os seus rins voltariam a crescer.

 Os rins extraídos vão, em grande parte, parar aos hospitais da Índia, onde o tráfico de órgãos continua a ser uma grande preocupação. A falta de dadores neste país deu origem a um mercado negro de larga escala, em que médicos e hospitais estão, várias vezes, envolvidos. Em dezembro do ano passado, a Organização Nacional de Transplante de Órgãos e Tecidos (NOTTO), sob tutela do Ministério da Saúde da Índia, abriu uma investigação no Hospital Apollo de Nova Deli, depois de terem surgido notícias que ligavam este estabelecimento a um esquema de venda ilegal de órgãos de jovens da Birmânia aos mais ricos do país.

“O meu rim foi doado a uma ‘irmã falsa’. Acho que o médico na Índia sabia que eu o tinha vendido.”, afirma Kanchha, acrescentando que os traficantes criaram documentos de identidade indianos falsos em Katmandu.

Já Suman, de 31 anos, conta à Sky News que, há uns anos, estava a passar por uma situação tão delicada a nível financeiro e emocional que decidiu viajar para a Índia e vender o seu rim a uma mulher que se fez passar por sua irmã – de acordo com a lei indiana, os dadores têm de ser parentes dos recetores e devem apresentar os documentos legais necessários – recebendo 3 mil libras (cerca de 3500 euros) pela venda. “Quando acordei, estava a sentir muitas dores. Agora, não posso trabalhar”, diz.

Rins no centro de nova crise de saúde no país

Os habitantes de Hokse garantem que na região já ninguém tem vendido os seus rins. Contudo, alguns deles continuam a correr riscos extremos na tentativa de melhorarem as suas vidas, escreve a Sky News.

Ao longo de três anos, Jit Bahadur Gurung, agora com 29 anos, emigrou para a Arábia Saudita para trabalhar “sob um calor extremo, cerca de 50 graus”. “Não tínhamos tempo para almoçar, ir à casa de banho ou beber água”, conta. “Estava a sobreaquecer. De repente, senti os meus pés a inchar e não conseguia andar. Depois, disseram-me que o meu rim tinha falhado”, acrescenta.

Gurung realiza, agora, sessões de quatro horas de diálise, três vezes por semana, no Centro Nacional do Rim em Katmandu, e espera desesperadamente por um dador.

Também Ishwor, de 34 anos, que trabalhou durante sete anos no Dubai, 16 horas por dia, passou pelo mesmo. “O meu corpo começou a inchar como se tivesse sido espancado”, diz.

Tal como Gurung e Ishwor, vários jovens, antes saudáveis (estes homens tiveram de realizar exames médicos antes de poderem viajar para o estrangeiro para trabalhar, daí assumir-se que seriam saudáveis), estão agora a regressar ao Nepal após anos a trabalharem em condições de calor extremo e desidratação grave, e estão neste momento a precisar de um transplante de rim com urgência.

Os sintomas de insuficiência renal podem muitas vezes passar despercebidos e, quando os trabalhadores migrantes regressam ao Nepal, já é demasiado tarde.

Pukar Shresth, médico cirurgião no Centro de Transplantação de Órgãos Humanos do Nepal, tem reparado recentemente num padrão: homens jovens que saíram do país e que trabalharam em locais de muito calor, com pouca água, regressavam ao Nepal com os rins em falência total.

“Cerca de um terço de todos os transplantes são efetuados em trabalhadores migrantes que vieram do estrangeiro”, refere, acrescentando que esta situação tem sido “um enorme fardo” para os recursos de saúde nepaleses.

Os trabalhadores migrantes nepaleses representam cerca de 14% da população e, por isso, este número torna-se assustador e traz à tona outro grande problema: as condições de trabalho dos nepaleses no estrangeiro.

Visão, 04/01/2024