Perfil. A vida de um descendente de cambistas; de economista-chefe do BES, antes do 25 de abril de 1974, até cair em desgraça com o seu banco, em 2014.
Ricardo Salgado, nascido em Cascais, em junho de 1944 (tem 80 anos), é descendente de uma linhagem de financeiros que começou no seu bisavô, o patriarca José Maria do Espírito Santo Silva, um cambista rico e bem sucedido de Lisboa, no final do século XIX, filho de pais incógnitos, em bebé entregue à Igreja e aí crismado com o natural apelido Espírito Santo. A história foi confirmada há uns anos, em entrevista ao Jornal de Negócios, pelo primo direito, entretanto desavindo, José Maria Ricciardi.
De nome completo, Ricardo Espírito Santo Silva Salgado, foi um dos homens mais poderosos e ricos de Portugal. Era chamado, com fascínio e algum temor, “dono disto tudo”, uma alusão direta a DDT, o veneno.
Hoje, é mais o devedor disto tudo. O universo BES/GES implodiu em 2014, os contribuintes foram chamados a segurar o banco (que era um dos maiores de Portugal e “demasiado grande para falir”), sendo que a fatura pública já vai em 8,3 mil milhões de euros, segundo os cálculos mais recentes do Tribunal de Contas.
No processo que agora começa a ser julgado, o Ministério Público fala em muito mais, em quase 12 mil milhões de euros em “vantagens” obtidas através de “crimes”. Mais de 60, segundo a acusação.
A sua educação esteve sempre a “walking distance” de casa. Primeiro, no Liceu Pedro Nunes, depois no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (atualmente, ISEG), onde tirou a licenciatura em Economia, com 25 anos.
Com 28 anos, entrou diretamente nos quadros do banco da família, o Banco Espírito Santo & Comercial de Lisboa (BESCL), para um lugar de destaque. Começou como economista-chefe do banco e poucos anos depois passou a chefiar a poderosa direção de crédito, o departamento onde se fazia mais dinheiro.
A ascensão de Salgado dentro da instituição financeira seria interrompida em 1975, quando o banco foi nacionalizado.
Acumulou fortuna e foi na Suíça que organizou a plataforma de regresso e tomada do poder em Portugal. Esperou pela C.E.E., pelas privatizações em 1991, que lhe permitiram reaver o seu valioso BES.
Esteve presente em todos os momentos chave da economia nacional. Além da internacionalização do BES (África, Brasil, Espanha, Suíça), Salgado reuniu interesses em negócios chave como as reprivatizações dos gigantes nacionais, como Galp, EDP, foi o engenheiro financeiro de grandes obras públicas em Portugal, um período de explosão económica que durou cerca de uma década e meia.
Foi o homem que entrou no edifício do Conselho de Ministros em outubro de 2012, quando o Governo PSD-CDS estava a aprovar o maior pacote de austeridade da História recente do país na sequência do “enorme aumento de impostos”.
O início do fim
Foi em 2008 que o mundo de Salgado e da alta-finança mudou com estrondo. Em setembro de 2008, falia o Lehman Brothers, um dos maiores bancos do mundo, arrastando consigo bancos e seguradoras e uma certeza de que até então era possível ganhar e fazer negócios de valor astronómico sem grandes garantias e até bases realistas.
Salgado também terá efabulado bastante, dando a ganhar e muito a perder. Prometeu mundos e fundos, segundo as várias acusações desviou milhões em proveito próprio, extraiu valor à própria família e a milhares de aforradores de uma vida (os cerca de 2000 lesados) que confiaram ao BES poupanças que afinal não eram depósitos a prazo garantidos, mas afinal produtos de alto risco. Perderam quase tudo.
Salgado tem hoje uma saúde débil, uma doença neurológica incapacitante. Mas, sem a infeliz fatalidade, nada indicia que viesse a alterar o que sempre afirmou com certeza e tenacidade sobre o colapso do império: que nunca roubou ninguém, que a culpa foi do Banco de Portugal e do BCE, que decidiram persegui-lo e tiraram-lhe o tapete no verão de 2014, quando o BES faliu e foi “resolvido”.
Dinheiro Vivo, 14/10/2024