Interesse dos EUA nas riquezas minerais do Congo pode “oferecer” perdão a bilionário israelita suspeito de corrupção

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A mineração de metais para a produção de carros e dispositivos elétricos, especialmente cobalto e cobre, tem ganho relevo na República Democrática do Congo, onde a escravatura, violações de direitos humanos e exploração infantil também são recorrentes. Mas os EUA querem apanhar a China e podem perdoar um bilionário israelita, sancionado por corrupção, para conseguir uma fatia do bolo e aumentar a produção doméstica de baterias recarregáveis

A transição energética e a substituição gradual dos combustíveis fósseis tem empurrado as maiores potências económicas para uma corrida em busca das matérias primas que serão essenciais para um futuro mais elétrico. E na casa de partida de muitas dessas potências está a República Democrática do Congo (RDC).

Segundo avança esta sexta-feira o “New York Times”, os Estados Unidos da América estão a considerar levantar sanções impostas há três anos contra Dan Gertler, um bilionário israelita ligado à indústria da mineração e suspeito de práticas de corrupção na RDC. O objetivo, explica, é libertar o negócio dessa mancha, ilibando o empresário e aumentando assim o investimento de várias empresas no país. Em resultado, poder-se-ia aumentar a produção de baterias nos EUA e combater a influência chinesa no continente africano.

O jornal norte-americano explica que, graças ao investimento ao longo dos anos e ao crescimento do número de minas, o empresário tornou-se num dos grandes detentores de direitos de mineração no Congo. Em abril de 2023, foi alvo de várias queixas de corrupção, com organizações não-governamentais (ONG) a acusarem-no de enriquecer à custa de uma das populações mais empobrecidas do planeta.

O acordo proposto permitirá que Gertler venda as ações que detém em três empresas de cobre e uma mina de cobalto no Congo e a Casa Branca espera que o mercado de carros elétricos cresça nos EUA. A reversão das sanções enquadrar-se-ia na política ambiental de Joe Biden, que tem-se pautado por uma maior aposta em soluções renováveis em prol dos combustíveis fósseis.

Além disso, os EUA querem tentar crescer num mercado dominado pela China, que começou a investir financeira e politicamente na África Central há vários anos. Segundo a agência Benchmark Mineral Intelligence, as empresas chinesas detém ações em 18 das 26 produtoras de cobalto na RDC.

No entanto, como muitas ONG, os departamentos de Estado e do Tesouro têm advertido para o risco de limpar a imagem de Dan Gertler e das suas empresas no território. O caso ilustra, de acordo com vários ativistas, o que os países mais desenvolvidos estão dispostos a fazer (ou a ignorar), quando os seus interesses económicos estão em causa – uma crítica que também é alargada a investimentos norte-americanos e europeus na Arábia Saudita e Catar, por exemplo.

Mundo ocidental depende do cobalto do Congo, que continua sem sair da pobreza

Organizações não-governamentais têm alertado para a crise humanitária decorrente da minagem de materiais usados para produzir baterias elétricas. Numa altura em que muitos pedem justiça climática, são os congoleses mais pobres que fabricam as baterias que alimentam a transição energética do resto do planeta.

É no país que residem as maiores reservas do mundo de cobalto, um metal fundamental para as baterias de lítio que são usadas em veículos elétricos e outros dispositivos, além da forte presença de cobre, ouro e muitos outros metais. Segundo os dados da Administração Internacional de Comércio norte-americana e da agência ambiental da ONU, quase 70% de todo o cobalto no mundo está na RDC.

Contudo, apesar das vastas reservas de recursos naturais, a RDC continua a ser um dos países mais pobres do mundo e está em quarto lugar na lista da Forbes relativa ao risco de pobreza. Cerca de 62% dos congoleses vivem com menos de dois euros por dia e o país tem níveis extremamente elevados de subnutrição, analfabetismo e falta de acesso a cuidados de saúde, entre outros problemas.

Num relatório de setembro de 2023, a Amnistia Internacional dava conta de despejos e deslocações forçadas de comunidades congolesas, destruição de casas e aldeias, e “abusos de direitos humanos chocantes, incluindo agressão sexual, fogo posto e agressões físicas”, devido ao aumento e intensificação da exploração mineira – que depende de crianças para trabalhos perigosos.

“A Amnistia Internacional reconhece o papel vital das baterias recarregáveis na transição energética dos combustíveis fósseis. Mas a justiça climática exige uma transição justa. Descarbonizar a economia global não pode levar a mais violações de direitos humanos”, afirmou a organização. Num comunicado, a secretária-geral da Amnistia, Agnès Callamard, acrescentou que “o povo da RDC viveu uma exploração significativa e abusos durante a era colonial e pós-colonial, e os seus direitos continuam a ser sacrificados, à medida que a riqueza à sua volta é-lhes retirada”.

Em dezembro de 2022, 16 entidades, incluindo quatro antigos trabalhadores de minas na RDC e representantes de crianças congolesas, mortas e feridas em minas de cobalto, processaram cinco gigantes tecnológicas – Apple, Dell, Microsoft, Tesla e Alphabet (empresa que detém a Google) – pelo seu papel no aumento de casos de escravatura moderna no Congo.

Em março deste ano, segundo explica a ABC News, um tribunal norte-americano absolveu as multinacionais. “Muitos atores além dos fornecedores de cobalto perpetuam tráfico laboral, incluindo os negociantes, os consumidores e até o governo da RDC. Obrigar as empresas tecnológicas a ‘parar a exploração de cobalto de usar trabalho forçado infantil’ não responsabilizaria os responsáveis diretos pelo trabalho ilegal”, argumentou o tribunal.

Acordo criticado dentro e fora da política norte-americana

Apesar das intenções da Casa Branca, que acredita que o acordo com Dan Gertler seja uma nova janela de oportunidade e reforma para a região, a opinião não é unânime. Ao “New York Times”, Anneke Van Woudenberg, diretora-executiva da RAID, uma organização sem fins lucrativos que monitoriza a mineração em países como o Congo, afirmou que levantar sanções a Gertler é “ridículo”. “O acordo deixa-o sair rico, ileso e sem ser responsabilizado, e preocupa-se pouco com quem mais importa: o povo da RDC”, disse.

No Congresso norte-americano também se têm ouvido críticas de alguns senadores, especialmente na oposição. “A Administração Biden recusou ser transparente sobre qualquer estrutura para um acordo neste assunto ou sobre quem estava a liderar esta política. A questão crítica é: o que impede Gertler de simplesmente regressar ao Congo agora ou com uma futura administração?”, questionou o senador republicano Jim Risch, do Idaho, em resposta ao “The Times”.

Gertler, que tem uma longa relação com a família do antigo presidente congolês Laurent Kabila, foi sancionado em dezembro de 2017 pelo Tesouro dos EUA [equivalente ao ministério das Finanças], que o acusou de estar envolvido em “negócios de exploração mineira e petrolífera corruptos e opacos”, por garantir novas concessões através da família Kabila.

Para já, com base em testemunhos de oficiais da Administração Biden ao “New York Times”, a Casa Branca passou aos advogados do bilionário israelita um rascunho desse acordo na semana passada. A estrutura inclui a possibilidade de Gertler vender a sua presença nas empresas Kamoto Copper Company, Mutanda Mining (ambas detidas por uma empresa baseada na Suíça, a Glencore) e Metalkol RTR (detida em parte pelo governo do Azerbaijão). Só estas três empresas produzem cerca de 30% do cobalto a nível mundial.

Gertler, que nega todas as acusações de corrupção que levaram à aplicação de sanções, defendendo que criou postos de trabalho no Congo, deixou de ser dono da Glencore desde 2017. Mas continua a enriquecer com o cobalto e cobre explorados na RDC. O jornal norte-americano explicou que o israelita ganhou cerca de 110 milhões de dólares por ano em royalties a partir do Congo, mesmo estando impedido pelas sanções de negociar com bancos mundiais.

Por outro lado, Gertler ficará obrigado pelo acordo a declarar todos os bens e empresas que detém na República Democrática do Congo a uma entidade independente, que trataria de rever o portfólio deixado.

E, apesar das gravíssimas violações de direitos humanos levadas a cabo em infraestruturas geridas por empresas de Gertler, o empresário também terá de retirar os processos de difamação contra várias ONG, que criticaram o papel de multinacionais no aumento do tráfico humano e escravatura moderna no Congo.

Human Rights Watch, uma das maiores ONG de defesa de direitos humanos no mundo, sublinhou que o processo de Dan Gertler contra a coligação anti-corrupção “Congo Is Not For Sale” foi contestado por quase 150 organizações cívicas.

Expresso, 21/05/2024