Candidata a líder da IL esteve 13 anos em empresa portuguesa da Sonangol, três como administradora. MP investiga compra e venda de prédio em Lisboa. Leitão diz que não teve responsabilidade na área.
Antes de entrar na vida política ativa, Mariana Leitão construiu a carreira profissional numa única empresa: a Puaça, uma subsidiária portuguesa da petrolífera estatal angolana Sonangol. O seu papel na empresa, ao longo dos 13 anos e cinco meses que ali trabalhou, seria várias vezes influenciado pela situação política em Angola. E pode agora trazer-lhe problemas políticos pela sua ligação a um regime que tem sido considerado corrupto, sendo a Sonangol vista como o principal veículo dos esquemas de distribuição indevida de riqueza e um instrumento para a manutenção no poder de José Eduardo dos Santos, ex-Presidente do país.
A candidata única à liderança da IL entrou na empresa em 2005, quando o antigo vice-Presidente da República angolano, Manuel Vicente, estava à frente da Sonangol. Anos mais tarde, seria afastada do conselho de administração da Puaça quando houve uma mudança na cúpula da empresa, com Isabel dos Santos a ser nomeada pelo pai, José Eduardo dos Santos, para liderar o grupo angolano. E acabou por sair em 2019, depois de o então recém-eleito Presidente angolano, João Lourenço, ter procurado reestruturar a Sonangol, centrando-a mais no seu core bussiness, o petróleo, reduzindo a atividade da Puaça.
Antes de entrar para o conselho de administração, Mariana Leitão era diretora de operações do programa de bolsas de estudo da Sonangol — que apostava na formação de quadros —, coordenando a estadia dos bolseiros angolanos em Portugal. Mas a empresa tinha outras áreas de atuação com com maior impacto financeiro. A Puaça — ainda em atividade hoje em dia, apesar de registar um volume de negócios de expressão residual — também tinha uma participação numa agência de viagens, a Atlântida, e atuava no mercado imobiliário. É aqui que há um negócio em particular que está a ser alvo de investigação pela Justiça portuguesa.
O Ministério Público abriu um inquérito à compra e venda, pela Puaça, do edifício de 27 mil metros quadrados que ocupa os números 5 a 7 da Avenida da República, no Saldanha, em Lisboa, confirmou fonte oficial da Procuradoria Geral da República (PGR) ao Observador. Em 2009, numa altura de contraciclo para o mercado imobiliário, o prédio, inacabado, foi comprado por cerca de 38,5 milhões de euros. Passados 12 anos, sem que a obra tivesse sido terminada, a Puaça vendeu-o por apenas 30 milhões de euros.
A PGR não revela as razões que levaram à abertura do inquérito, nem quais as suspeitas, mas acrescenta que “não há arguidos constituídos no inquérito, pelo que não é possível confirmar qualquer nome” visado no processo.
Mariana Leitão nega “qualquer responsabilidade, influência, decisão ou participação” na compra e venda do edifício da Puaça na Avenida da República. E afirma: “Nunca reportei diretamente a Manuel Vicente ou a Isabel dos Santos. No exercício das minhas funções não tinha contacto com eles. Depois de sair da Puaça também não.”
A deputada liberal deixou de trabalhar na Puaça em 2019, precisamente o ano em que o edifício foi colocado à venda. E já não trabalhava na empresa quando, em 2021, o prédio foi finalmente vendido, depois de seis propostas terem sido recusadas, segundo adiantou então o Jornal de Negócios. Na altura da compra do edifício, em 2009, Mariana Leitão era diretora de operações e desempenhava funções de “gestão administrativa e financeira“, como se pode ler na sua página do Linkedin. Contudo, a deputada liberal garante ao Observador que “à data da compra do edifício não tinha responsabilidades em mais nenhuma área da empresa que não fosse a gestão do programa de bolsas de estudo”.
A ascensão de Mariana Leitão na Puaça
Em agosto de 2005, Mariana Leitão concluiu a licenciatura em Relações Internacionais e Ciência Política na Universidade Lusíada de Lisboa com uma nota final de 13 valores. Depois de um estágio de um mês no jornal Semanário, em outubro começava a sua carreira na Puaça, aos 23 anos. “Enviei currículo, fiz várias entrevistas e ganhei a vaga, tendo sido contratada. Entrei como assistente administrativa”, conta ao Observador.
O pai de Mariana Leitão, o advogado António Leitão, teria trabalhado com o então presidente da Sonangol, Manuel Vicente, como asseguram ao Observador duas fontes angolanas que pediram anonimato. Questionada pelo Observador, Mariana Leitão não respondeu se, antes da sua contratação, já tinha alguma ligação com a Puaça ou com o grupo Sonangol. Quanto às ligações da sua família com o segundo homem mais poderoso de Angola à altura, diz: “Não estou habilitada para responder em relação à atividade profissional passada de advogado do meu falecido pai.”
Já Armindo Pires, amigo pessoal e procurador de Manuel Vicente em Portugal, que esteve no conselho de administração da Puaça ao mesmo tempo que Mariana Leitão, admite que era “cliente pessoal do escritório” do pai da candidata à liderança da IL. “Não sei bem se António Leitão trabalhou para a Sonangol e não acredito que tenha trabalhado com Manuel Vicente”, diz o advogado. Já à pergunta sobre se levava os assuntos de Manuel Vicente ao escritório de António Leitão, Armindo Pires reiterou apenas ser “pessoalmente cliente” de Leitão e que era procurador de Manuel Vicente “só para movimentar contas e pouco mais”. Por outro lado, assegura que só conheceu Mariana Leitão em 2013.
Armindo Pires foi acusado em fevereiro de 2017 dos crimes de corrupção ativa, de branqueamento de capitais e de falsificação de documento (em co-autoria com Manuel Vicente) no âmbito da Operação Fizz — processo que levou o procurador Orlando Figueira à prisão por ter sido corrompido pelo ex-Presidente de Angola. Mais tarde, em dezembro de 2018, Pires foi absolvido de todos os crimes pelo tribunal de primeira instância.
Em fevereiro de 2007, menos de dois anos depois da entrada na empresa, Mariana Leitão seria promovida ao cargo de diretora de operações do programa de bolsas da Sonangol. “Na altura, a Puaça tinha uma empresa externa a gerir o programa dos bolseiros angolanos da Sonangol e queria internalizar essa função. Fiquei eu a gerir esse programa. Tratava-se de trazer bolseiros de Angola para estudar em Portugal, gerindo a sua colocação em universidades, o seu alojamento, a sua performance estudantil, gerando relatórios com o seu perfil académico, procurando dar uma educação e uma nova vida a muitos jovens angolanos que não teriam condições para estudar de outra forma.”
A deputada liberal explica que, com a subida do número de bolseiros, “foi necessário aumentar a equipa e contratar mais pessoas” e que a sua promoção se justificou com o aumento da estrutura e da responsabilidade da empresa. “No pico de atividade eram cerca de 200 bolseiros angolanos a estudar em Portugal em várias cidades”, aponta.
Um ano depois, em dezembro de 2008, a sociedade por quotas passou a sociedade anónima, o capital social subiu para cinco milhões e Mariana Leitão tornou-se acionista com 100 euros e entrou pela primeira vez, por pouco mais de dois meses, no conselho de administração.
Em 2013, a liberal entraria novamente no conselho de administração — desta vez, durante mais tempo. Foi nomeada vogal do conselho de administração da Puaça ao mesmo tempo que Armando Pires. Sairia em 2016, com a chegada da que era então considerada a mulher mais rica de África, a filha mais velha de José Eduardo dos Santos. “Após Isabel dos Santos ser designada presidente do conselho de administração da Sonangol, foi nomeado novo conselho da administração da Puaça e eu deixei de ser administradora, mantendo as minhas funções de diretora”, diz ao Observador.
No seu perfil de LinkedIn, a liberal não distingue entre as suas funções antes e depois de 2016. Segundo escreve, entre 2013 e 2019 foi responsável por “desenvolver e executar políticas abrangentes, objetivos e estratégias de negócio; fazer aconselhamento estratégico ao conselho de administração; preparar e implementar planos de negócio; realizar e controlar orçamentos; monitorizar e controlar o progresso de todas as atividades (performance financeira, investimentos e qualidade)”.
Em resposta a uma pergunta do Observador, a PGR esclarece que, no inquérito relativo à compra e venda do edifício na Saldanha, a investigação “não incide” sobre o período entre 2013 e 2019. Mas não esclarece que período está a ser analisado.

Sonangol queria sede em Portugal mas vendeu 8,5 milhões abaixo do preço de compra
Durante a maior parte do tempo de Mariana Leitão na Puaça, o dossiê do edifício na Avenida da República foi de longe o investimento mais valioso da empresa. A compra do imóvel tinha atraído alguma atenção logo no ano da sua concretização. Em 2009, na sequência da crise do subprime nos EUA, Portugal vivia o segundo ano de uma significativa contração do mercado imobiliário.
Nessa altura, para além de não estar acabado, segundo o Jornal de Negócios, o imóvel não tinha licença de utilização. Ainda assim, a Puaça decidiu investir 38,5 milhões de euros, tendo como objetivo concentrar naquele espaço várias empresas angolanas com ligações ao grupo Sonangol que tivessem investimentos em Portugal. Seria a sede da Sonangol em Portugal, no coração de Lisboa. Em 2010, o capital social da empresa passa para 40 milhões de euros.
Um investimento desta grandeza teve grande expressão no mercado imobiliário nacional, numa fase de fraco investimento no setor no país, que atravessava uma profunda crise económica. De acordo com o mesmo jornal, no ano anterior à compra, o total dos movimentos de grandes ativos imobiliários no país rondava os 500 milhões de euros, com um valor médio inferior a 10 milhões de euros. Contudo, segundo uma estimativa de 2019, se o edifício estivesse pronto a utilizar, teria um valor potencial superior a 60 milhões de euros. Esse acabou por não ser o caso. A Puaça fez alterações ao projeto e deu início às obras, mas estas seriam suspensas em 2015.
Com a subida ao poder de João Lourenço, em 2017, e a aplicação do seu Programa de Privatizações (Propriv), o edifício foi identificado como um dos ativos do grupo Sonangol a alienar e foi posto à venda com urgência em 2019. Depois de terem sido recusadas pelo menos seis propostas, o imóvel foi vendido, em 2021, por 30 milhões, ao fundo de investimento britânico Signal Capital Partners. Um valor muito abaixo do da aquisição.
Reorientação estratégica da Sonangol e “inviabilidade” da Puaça levaram à saída de Mariana Leitão
Ainda que este imóvel fosse o maior ativo da empresa, era a gestão de bolseiros internacionais da Sonangol que exigia o maior volume de trabalho. A avaliação é feita pela própria administração da Puaça, segundo é possível verificar numa cópia do processo de despedimento coletivo de oito trabalhadores. Este processo foi enviado à Comissão Para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE), no sentido de pedir um parecer prévio ao despedimento de uma trabalhadora que tinha acabado de ser mãe e de outra que estava ainda a amamentar.
Neste documento, que data do final de 2018, a administração da Puaça alega que, desde 2016, a “estratégia de formação de quadros” da Sonangol “se tem vindo a alterar”, causando um “impacto directo muito negativo” na actividade da Puaça. A partir desse ano, o número de bolseiros recebidos anualmente pela empresa passou a ser “meramente simbólico”, após a petrolífera angolana ter decidido transferir a responsabilidade da gestão dos estudantes angolanos em Portugal para outra sociedade, com efeito a partir de 1 de novembro de 2018.
Mariana Leitão explica ao Observador que o fim do programa dos bolseiros “levou à extinção do posto de trabalho das pessoas que nela trabalhavam” incluindo o seu. Contudo, a liberal, que então fazia parte da direção da empresa, garante que o “processo decorreu dentro de toda a normalidade, tendo sido assegurados todos os direitos, prazos e indemnizações previstas na lei”.
Para justificar a extinção dos postos de trabalho, a administração da Puaça explicava ainda que “nos últimos cinco anos foram alienados grande parte dos imóveis” detidos pela empresa. Em relação a estes ativos imobiliários, destaca-se a suspensão, em 2015, da obra no edifício da Avenida da República — “o único projeto imobiliário que estava em curso” — e a decisão de alienação do mesmo “tal como se encontrava“.
Mariana Leitão explica ao Observador que esta foi uma “decisão do acionista, na altura relacionada com a crise económica que se vivia em Angola” — a partir de 2014, com a queda do preço dos barris do petróleo, o país entrou num período difícil. Ainda que alegue não ter tido “qualquer responsabilidade, influência, decisão ou participação” na compra e venda do edifício, a líder parlamentar da IL conta que fez “parte da equipa de reconversão e requalificação do mesmo, o que implicou gestão de fornecedores, arquitetos e prazos de obra”.
A diminuição dos ativos imobiliários da empresa e a quebra nos serviços prestados aos bolseiros originaram perdas na Puaça, quando esta já “lutava contra o desequilíbrio económico-financeiro”. Esta situação determinou “a inviabilidade da empresa por ausência de meios financeiros, dado os acionistas não pretenderem continuar a financiar a empresa”, lê-se no processo do despedimento dos trabalhadores. No entanto, a Puaça, com trinta anos e capital social de 40 milhões de euros, ainda não foi privatizada, e continua ativa, estando registada com a atividade económica de compra e venda de imóveis.
Ligação à empresa do “Sr. Petróleo”, um “pesadelo para a liberal”
A ligação de Mariana Leitão à poderosa “empresa-Estado” angolana e a um dos homens mais ricos de Angola pode tornar-se problemática. E não só para a candidata única à liderança da IL, como também para o próprio partido, refere Paula Cristina Roque, especialista em estudos africanos. “Não é um bom historial para Mariana Leitão a sua relação com Manuel Vicente, que Portugal considerou ser corruptor e cujo processo ainda decorre em Angola. Esta ligação ao poder corrupto angolano, a um regime mundialmente conhecido pelo seu nepotismo, que alimentou uma elite desprotegendo a maioria do povo que é pobre ou passa fome, não tem cuidados de saúde nem emprego, só pode ser um pesadelo para a liberal”, lamenta a investigadora do Centro de Estudos Africanos da Universidade de Oxford.
“A não ser que mostre que, durante os anos em que esteve na empresa, não houve nada a apontar, qualquer irregularidade”, ressalva Paula Cristina Roque. Se isso não acontecer, há o risco de que “o próprio partido fique refém do passado de Mariana Leitão”, frisa a também diretora executiva da Intelwatch, organização sem fins lucrativos dedicada a reforçar a supervisão pública e democrática dos serviços de informação estatais e privados, na África Austral e no resto do mundo.
Ainda ninguém se esquecera do “Triângulo das Bermudas”: a Sonangol criara um mecanismo offshore que permitia que a elite angolana se apropriasse de muito dinheiro, o que causou um buraco nas contas públicas de cerca de 4,22 mil milhões de euros.
Existe sempre uma questão política que pode ser alvo de escrutínio. Essa é a linha que o colunista do Observador Rodrigo Adão da Fonseca seguiu. O empresário, que trabalhou em Angola, refere num artigo de opinião recente que Mariana Leitão possui uma trajetória “incompatível com os requisitos mínimos esperados para a liderança de um partido que se diz liberal”. O especialista na área da cibersegurança e proteção de dados diz não conseguir “racionalmente conceber como é que alguém que durante treze anos exerceu sem desconforto e seguramente com alguma miopia funções (…) na esfera de uma empresa pública tão sinistra quanto a Sonangol, tem perfil para dar coerência à mensagem da IL e levar o partido mais longe do que os seus antecessores”.
Mariana Leitão chega à Puaça nos “anos dourados” de Angola
Mariana Leitão chegou à Sonangol nos “anos dourados” de Angola, quando a economia subia ao ritmo dos dois dígitos, vivia-se a euforia dos “petrodólares” e o entusiasmo da reconstrução do país era terreno fértil para muitas oportunidades de negócio. Os quase trinta anos de guerra civil tinham terminado há três anos, em 2002, com o assassinato de Jonas Savimbi, o líder da UNITA, e o regime desfraldava o slogan “Angola começa agora”.
A Sonangol era, na paz, o mesmo instrumento económico e político que tinha sido nos anos das armas. Uma ferramenta de poder usada por José Eduardo dos Santos, Presidente de Angola desde 1979. A petrolífera reportava diretamente ao chefe de Estado, escapando a qualquer órgão de fiscalização. Durante anos, foi um verdadeiro “Estado dentro do Estado”, com autonomia orçamental e controlo sobre vastos recursos, diversificando a sua atividade. Financiava projetos estatais, pagava salários de instituições públicas e cobria despesas militares (durante a guerra civil).
Na verdade, era o real fundo soberano do país. Durante o longo consulado de José Eduardo dos Santos, que durou 38 anos, a Sonangol foi usada para financiar o MPLA (partido no poder desde 1975), alimentar o clientelismo político e proteger e enriquecer uma oligarquia, defende Ricardo Soares de Oliveira, o investigador da Universidade de Oxford no seu livro Magnífica e Miserável, Angola desde a guerra civil.
Ao mesmo tempo, a empresa era associada a esquemas de corrupção e má gestão. Relatórios do FMI e do Banco Mundial criticaram a opacidade nas contas e transferências diretas para fundos presidenciais. A empresa criou e controlou offshores, imóveis, bancos e empresas em Portugal, China, Suíça e Emirados, por exemplo, sem que fosse sujeita, muitas vezes, a qualquer escrutínio político (que não o de José Eduardo dos Santos, eventualmente) e muito menos público. E, no ímpeto eduardista de reconstruir Angola, foi usada para garantir parcerias com empresas estrangeiras em termos altamente vantajosos para os seus intermediários políticos. Uma ideia que franqueava a porta a muita corrupção.
Nesse processo, um nome foi central: Manuel Vicente, o “Sr. Petróleo” de Angola, como o Financial Times lhe chamou.

Em 2010, Manuel Vicente recebeu 280 mil euros da Puaça
Quando Mariana Leitão chegou à Puaça, já Manuel Vicente era presidente da Sonangol há seis anos. Ele encarnou bem os objetivos do Presidente da República angolano: a reconstrução das infraestruturas e a criação de um burguesia empresarial, um setor privado forte em que os investidores internacionais teriam sempre de aliar-se a sócios angolanos.
Angola triplicou a produção de petróleo para 2 milhões de barris diários, tornando-se, segundo o Financial Times, num dos principais produtores de África ao lado da Nigéria e o segundo maior fornecedor da China, depois da Arábia Saudita. E a Sonangol transformou-se na segundo maior grupo empresarial de África. Só em 2011, as receitas da petrolífera somavam cerca de 34 mil milhões de euros — valor ao nível das melhores empresas do mundo.
Foi também nesse ano que o FMI encontrou um buraco nas contas nacionais de Angola: 32 mil milhões de dólares entre 2007 e 2010 (mais de 27,5 mil milhões de euros, ao câmbio atual). Um montante que a Sonangol nunca terá transferido para o Estado. Ainda ninguém se esquecera do “Triângulo das Bermudas”: a empresa criara um mecanismo offshore que permitia que a elite angolana se apropriasse de muito dinheiro, o que causou um buraco nas contas públicas de cerca de 4,22 mil milhões entre 1997 e 2002, segundo o FMI. Algumas estimativas diziam que, nesse período, o “Triângulo das Bermudas” absorvia metade dos rendimentos anuais de Angola, realça o investigador Ricardo Soares de Oliveira em Magnífica e Miserável, Angola desde a guerra civil, livro onde descreve a atuação deste “Estado paralelo”.
Diversas organizações não-governamentais, como a reputada Global Witness, criticaram a falta de transparência na concessão de licenças de petróleo e contratos de exploração e ao risco de corrupção na sua atribuição assim como na redistribuição das receitas.
Com Manuel Vicente, a Sonangol rompeu as fronteiras petrolíferas e passou a ter um papel essencial nos setores imobiliários e financeiros. Em 2009, quando a crise mundial também atingia a economia angolana, o “Sr. Petróleo” assumiu o conselho de administração da Puaça, no dia em que, em sentido contrário, Mariana Leitão saiu desse órgão por onde passou meteoricamente: de 29 de dezembro de 2008 a 17 de fevereiro do ano seguinte. Contudo, a liberal continuou a ser diretora de operações da empresa e trabalhou sob a liderança de Vicente, até à sua saída para integrar o governo angolano, em 2012.
“No momento em que a empresa foi transformada de uma sociedade por quotas numa sociedade anónima, fui nomeada uma administração de transição que requeria três administradores. Assim que ocorreu a primeira Assembleia Geral, já em sociedade anónima, foi nomeado o novo Conselho de Administração, do qual eu não fazia parte.” A liberal explica também que deixou de ter a participação de 100 euros na empresa, “logo após a conversão em sociedade anónima”, que ocorreu antes da data da compra do edifício na Avenida da República.
Esse foi também o ano em que Angola decidiu ajudar Portugal, que atravessava uma grave crise económica, recorda, sob anonimato, um advogado ligado aos negócios angolanos. E investiu em bancos, na Galp, comprou imóveis, como o do Saldanha e, por exemplo, o convento de Brancanes, em Setúbal. O imóvel, construído no final do século XVII, que serviu como prisão entre 1998 e 2005, foi comprado pela Dirani Project III, outra subsidiária da Sonangol, que passou a fazer parte da esfera da Puaça em 2012. Foi a primeira cadeia que o Estado português vendeu, recorda o Jornal Económico.
Aliás, Manuel Vicente, segundo a declaração de IRS, em 2010 recebeu 280 mil euros vindos da Puaça, noticiou a revista Sábado. Precisamente o ano a seguir à compra do edifício no Saldanha.
A compra em 2011 de um imóvel por 3,8 milhões de euros no Estoril colocou Manuel Vicente na mira da justiça portuguesa, sob suspeitas de branqueamento de capitais. O segundo homem mais poderoso de Angola, apenas abaixo de José Eduardo dos Santos, estava de saída da Sonangol para o Palácio da Cidade Alta — passava a ser ministro do Plano, o primeiro passo para se tornar vice-Presidente da República, cargo que assumiria em 2012, depois das eleições.
Mais tarde chegou a Operação Fizz, em que Manuel Vicente foi acusado de corrupção pelo Ministério Público português, ao alegadamente pagar ao procurador Orlando Figueira para arquivar os seus processos. José Eduardo dos Santos disse no seu discurso do Estado da Nação, em 2013, que a parceria estratégica com Lisboa não se ia concretizar. O ministro dos Negócios Estrangeiros português, Rui Machete, chegou a pedir desculpas pelas investigações portuguesas — e foi já no reinado de João Lourenço que o processo de Manuel Vicente transitou para Luanda.
Angola queria a separação do processo em relação a Manuel Vicente e o envio dessa parte dos autos para a Justiça angolana, tendo contado com o apoio político do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e do primeiro-ministro António Costa. Contudo, a Procuradoria-Geral da República, liderada por Joana Marques Vidal, sempre se opôs à separação do processo da Operação Fizz.
Foi necessária uma decisão nesse sentido do Tribunal da Relação de Lisboa, tomada em dezembro de 2018, para que a acusação contra Vicente fosse transmitida a Angola. A Justiça portuguesa deu como comprovado que Manuel Vicente corrompeu o procurador Orlando Figueira, preso em outubro de 2024 para cumprir uma pena de seis anos e oito meses pelos crimes de corrupção, branqueamento de capitais, violação de segredo de justiça e falsificação de documento.
Isabel dos Santos afasta Mariana Leitão da administração
Foi em 2013 que Mariana Leitão se sentou novamente no conselho de administração, desta vez por três anos, até Isabel dos Santos chegar à Sonangol. A filha mais velha de José Eduardo dos Santos pediu uma auditoria e, com base nela, elaborou um relatório em que criticou fortemente a gestão de Manuel Vicente e propôs a reestruturação da petrolífera.
Ao mesmo tempo, afastou os que trabalharam na era Manuel Vicente, como Mariana Leitão, que ainda assim se manteve na Puaça até 2019 como diretora, já Isabel dos Santos tinha saído da Sonangol, destituída por João Lourenço, o novo Presidente de Angola. Armindo Pires, que reforça ao Observador o seu papel não executivo no conselho de administração entre 2013 e 2016 — “a Mariana era a administradora executiva, a gestão era dela e do Fernando Roberto”— insiste em frisar que a “Puaça se dedicava sobretudo a trabalhar para os bolseiros”.
Já a líder parlamentar da IL nega ter tido uma relação profissional com os dois antigos líderes da Sonangol: “Nunca reportei diretamente a Manuel Vicente ou a Isabel dos Santos. No exercício das minhas funções não tinha contacto com eles. Depois de sair da Puaça também não.”
Observador , 25/06/2025