Historicamente, a dívida da Humanidade para com África é eterna e impagável. Não fossem as condições propícias do continente-mãe para o desenvolvimento dos primeiros humanos há milhões e milhões de anos e ninguém pode assegurar que hoje estaríamos aqui para contar a história. Infelizmente, o desenvolvimento da espécie não tem sido justo com as suas origens e África é hoje um continente maltratado pelos seus descendentes (todos nós), divididos entre retóricas sobre reparações pós-colonialistas e práticas neocolonialistas que a mantêm num atraso crónico.
Esta semana, decorre em Nairobi, no Quénia, o encontro anual do Banco Africano de Desenvolvimento (BAD), que conta com 81 Estados-membros, entre 53 países africanos e 28 países fora do continente, incluindo Portugal. E a questão da dívida africana, no contexto de uma reforma da arquitetura financeira global, é um dos principais pontos em discussão. “A dívida de África é uma hemorragia que tem de ser parada rapidamente”, exortou o presidente do BAD, o nigeriano Akinwumi Adesina, colocando ênfase num dos maiores entraves ao desenvolvimento continental, a sua histórica dívida externa.
O repto de Adesina é tão mais relevante, quanto se observa a distorção que as políticas monetárias de altas taxas de juro impostas pelos principais bancos centrais ocidentais (o BCE e a Reserva Federal norte-americana) trouxeram aos mecanismos financeiros montados com o propósito de ajudar os países em desenvolvimento a recuperarem o seu atraso. De acordo com dados divulgados pela organização não-governamental ONE Campaign, no ano passado o chamado Sul Global (termo que abriga um conjunto de países em desenvolvimento) pagou mais pela sua dívida, em reembolso do capital e dos juros, do que recebeu em pacotes de ajuda ao desenvolvimento.
As entregas de dinheiro a este conjunto de países caíram para o nível mais baixo desde a crise financeira global de 2008, escrevia esta semana o jornal espanhol El País, concretizando que já em 2022 – o primeiro ano de fortes aumentos das taxas de juro nos EUA e na Europa para conter o aumento da inflação provocado sobretudo pela Guerra na Ucrânia -, os países do Sul Global pagaram quase 46 mil milhões de euros mais em dívida do que receberam em novos financiamentos, segundo as estatísticas recolhidas pela UNCTAD, Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, o órgão da Assembleia-Geral das Nações Unidas que procura promover a integração de países em desenvolvimento na economia mundial.
O Banco Africano de Desenvolvimento estima que a dívida externa total de África se situava em 1,15 biliões de dólares no final de 2023, com o continente a pagar 163 mil milhões de dólares de serviço da dívida nesse ano, quase o triplo do que acontecia em 2010. A conclusão parece óbvia. Como aponta o líder do BAD, “África não está a ser bem servida pela arquitetura financeira global”.
Com um esquema de financiamento que mais não faz, nesta altura, do que limitar a sua capacidade de crescimento, as ambiciosas metas de Desenvolvimento Sustentável – que incluem a ação climática e as energias renováveis, mas também outras tão primárias quanto erradicar fome e a pobreza – afiguram-se uma miragem. “Quando África gasta mais em juros do que em Educação, temos de falar de um fracasso sistémico”, conclui a secretária-geral da UNCTAD, a costa-riquenha Rebeca Grynspan.
Mais do que reparações simbólicas que mais não soam do que a uma espécie de colonialwashing para libertar da consciência o peso de fantasmas passados, para África seria bem mais útil que o resto do mundo se empenhasse efetivamente em ajudá-la a desenvolver-se. Se não libertando-a totalmente da dívida externa acumulada, pelo menos abstendo-a de a agravar com taxas de juro impostas pelos tecnocratas de Washington ou Frankfurt.
Encontrar um mecanismo de reestruturação da dívida africana que seja eficaz e oportuno para o desenvolvimento do continente-mãe (devidamente monitorizado nas suas metas) é a mínima das reparações históricas a fazer pelo mundo ocidental. E aí, parece-me, Portugal deu um bom exemplo, ainda pelo anterior Governo, nos acordos com Cabo Verde e São Tomé e Príncipe para reconversão da dívida destes países em investimentos climáticos. Mais do que compensar o passado, África precisa que a ajudem a viabilizar o futuro. Essa é a nossa dívida.
*O título original deste artigo foi modificado pelo editor.
Rui Frias, Dário de Notícias, 06/03/2024